quarta-feira, 20 de julho de 2011

O momento sagrado durante o Trabalho Espiritual de São Pedro, da Doutrina do Santo Daime.


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Ciências Sociais

Tópicos Especiais em Antropologia I

Professora: Márcia Contins

Aluno: Élbio Henrique Mendes Ribeiro

Trabalho de Campo:


O momento sagrado durante o Trabalho Espiritual de São Pedro, da

Doutrina do Santo Daime.

Neste texto pretendo apresentar minha experiência de participação do Trabalho Espiritual de São Pedro, da Doutrina do Santo Daime, tentando mostrar o contraste entre o momento sagrado e o profano, entre a vida religiosa e a vida cotidiana, e como se dá a busca pelo sagrado dentro da Doutrina através da execução do seu ritual.

A Doutrina do Santo Daime tem diversos tipos de Trabalhos Espirituais. Aqui falarei apenas sobre o Trabalho Bailado, executado no período de Festival, em homenagem à São Pedro. Este trabalho acontece do dia 28 de junho para o dia 29.

“Os seres sagrados são, por definição, seres separados. O que os caracteriza, é que, entre eles e os seres profanos, existe solução de continuidade. Normalmente, uns são externos aos outros. Todo um conjunto de ritos tem por objetivo efetivar esse estado de separação que é essencial.” (Durkheime)

“Todos aqueles que estiverem ouvindo estas verdades que são ditas pelos hinos, saibam que esta palavra não é nossa. Porque ela vem, como Ele diz: sai da minha boca e transmite em ti. O hino é uma coisa que deslapa e entra na consciência da pessoa pela intuição, ou por voz, em conformidade com o tipo do aparelho receptor, não é? O hino vem. Mas ele não é ele, aquela matéria que tá trazendo aquilo, é o Eu de lá do alto que tá mandando uma mensagem para o Eu interno. Se o Eu interno está bem desenvolvido, ele logo recebe. Se não, ele está ainda muito emperrado, tá ainda dormindo, não saiu de cima da sepultura, os anjos não vem revelar nada pra Ele. É que este Eu interno não está ouvindo nada. Ainda está morto. Daí é que eu sempre digo: ‘Quem não acordar agora, danou-se!’. É preciso aproveitar essas ervas sagradas que nós temos e que nos levam às alturas espirituais. Por elas é que a vida espiritual baixa sobre nós, material, em qualquer lugar que nós estiver. Não é só dentro de uma casa. É em qualquer lugar que nós formar e consagrar a nossa bebida, e as nossas plantas espirituais, nós vamos ao astral, que fica longe daqui e ao mesmo tempo fica bem perto daqui. Porque o corpo fica aonde fica, que é uma massa pesada. Mas o espírito vai aonde quer, porque ele sempre volta. Ninguém sabe donde ele veio, nem pra onde vai. Só o corpo, quando está bem desenvolvido e entrosado com o Eu interno, sabe o que ele diz” (Padrinho Sebastião; in: Alverga)

Meu trabalho sobre ritual foi realizado com base no “Trabalho de São Pedro da Doutrina do Santo Daime”. Este trabalho começou as 19:00hs do dia 28 de junho e foi madrugada adentro cantando um dos maiores Hinários da Doutrina, o Cruzeirinho do Padrinho Alfredo. Este trabalho acontece simultâneamente em todas as Igrejas que seguem a Linha do Padrinho Sebastião Mota em todo o mundo.

Sou Fardado na Doutrina e não seria elegante participar do trabalho sem Farda, o que me deu um certo trabalho. Cheguei em casa na noite do dia 27 e tive que lavar a calça do terno da minha Farda Branca e colocá-la para secar de um dia para o outro. Também tive que polir minha Estrela, que estava sem brilho. Um Fardado deve se apresentar impecável na “corrente” para o Trabalho de Juramidam.

A Doutrina do Santo Daime foi fundada em 1930, em Rio Branco, no Acre, por Raimundo Irineu Serra após um longo período de iniciação com a ayhuasca, na selva fronteriça do Brasil com o Peru, onde a bebida era utilizada em rituais mágicos-religiosos por grupos indígenas, desde tempos imemoriais. Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Luiz de Ferré, no estado do Maranhão. Chegou ao acre com 20 anos, integrando o movimento migratório de nordestinos para trabalhar na extração do látex, trazidos pela propaganda de enriquecimento fácil e fugindo da seca, que desde o final do século XIX castigava o nordeste brasileiro. Enfrentando o meio ambiente hostil e tendo que se adaptar a um novo mundo a duras penas, a cultura do homem nordestino vai fundir-se com a cultura indígena da região.

Chegando de Manaus, Irineu Serra vai atracar no porto Xapuri (AC), em 1912. Alí residiu dois anos, indo trabalhar posteriormente nos seringais de Brasiléia durante três anos e em seguida em Sena Madureira, onde residiu por mais três anos. Foi durante esse período que trabalhou na “Comissão de Limites”, órgão do governo federal encarregado da delimitação das fronteiras do Acre com a Bolívia e o Peru, aprofundando assim seu conhecimento nas matas acreanas.

No processo de aprendizagem da utilização da ayhuasca com índios peruanos, mestre Irineu aprendeu a reconhecer o cipó jagube, a folha chacrona (rainha) na floresta e a preparar a bebida. Com a utilização da ayhuasca, intensificou-se para ele a aparição de uma mulher chamada Clara, apresentando-se como Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta. Seguindo as instruções dela, mestre Irineu recebeu o nome de Santo Daime para a Bebida e uma série de regras que constiruíram posteriormente os fundamentos do ritual do Santo Daime.

A origem da palavra Daime vem da revelação da Rainha da Floresta, quando ela esclarece para o mestre que aquela bebida tinha muitos nomes, mas o nome verdadeiro era o próprio verbo divino Dar, Dar para os que necessitassem e pedissem, originando assim o nome Daime. Daime amor, Daime luz, Daime força, são expressões características da Doutrina do Santo Daime. A Rainha da Floresta concedeu-lhe a patente de Chefe do Império Juramidam, e o identificam com entidades espirituais incaicas precursoras na utilização do Santo Daime.

O mestre Irineu passa por uma fase de iniciação no interior da Floresta, típica de xamãs indígenas, onde a disciplina, o jejum as privações e abstinência sexual são condições indispensáveis na formação do xamã, que com isso passa a ter conhecimento, poderes de cura, vidência e possibilidade de comunicação com os espíritos. A missão do mestre Irineu é a missão de Juramidam, entidade divina que representa Cristo, revelando os ensinamentos da doutrina através dos hinos, que correspondem a Bíblia Sagrada. Um hinário é o conjunto de hinos – versos, musicados simples – recebidos por uma pessoa através da capacitação divina, é a linguagem de comunicação com o astral, onde estão todos os seres divinos.

“O Santo Daime tem em seus rituais tipos diferentes de trabalho: as Festas Oficiais (ou Festival), Trabalhos de Concentração, Santa Missa e Trabalhos de Cura.

O Festival acompanha o calendário cristão, cuja comemoração inicia-se na véspera à noite, prolongando-se até o amanhecer. O ano religioso da doutrina inicia-se no dia 06 de janeiro, em homenagem aos Três Reis do Oriente, é uma cerimônia especial onde se entrega o trabalho do ano que passou ao mestre ou pessoa por ele designada e se recebe o trabalho espiritual do ano que se inicia. Seguem-se as datas de 20 de janeiro (São Sebastião), 13 de junho (Santo Antônio), 24 de junho (São João Batista), 28 de junho (São Pedro) 02 de novembro (dia de finados), 15 de dezembro (aniversário do mestre Irineu) e 25 de dezembro (nascimento de Jesus Cristo), 31 de Dezembro (Ano Novo).

O ritual do Festival começa às 19:00h, quando reza-se um terço e em seguida é servido o Santo Daime na medida de um copo pequeno para os adultos e meio para as crianças. Lê-se a consagração do aposento e dá-se início ao hinário previamente escolhido, que é cantado sempre marcado pelo rítmo de maracás, acompanhando o movimento de deslocar-se para a direita e para a esquerda. Os homens e as mulheres ficam separados formando o que se chama correntes masculina e feminina, só podendo homens e mulheres conversarem no intervalo, que ocorre à meia noite, estendendo-se por uma hora aproximadamente. Geralmente é no segundo tempo, quando reinicia o hinário do hino onde o Trabalho parou, que os músicos começam a tocar seus instrumentos.” (FERNANDES)

Realizei o Trabalho na Igreja Jardim Praia da Beira Mar, uma linda Igreja que fica na Prainha, Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro. É muito distante do Centro da Cidade, tive que sair mais cedo do meu trabalho. E é aí que começa a diferenciação entre o momento sagrado e o profano. O momento profano está ligado à coisas do Mundo, que na Doutrina são chamadas de “vida material”. O momento sagrado está ligado ao divino, à busca de Deus, ao “Astral”.

Saindo do trabalho (da vida material), me dei por conta de que passaria ao menos 08 horas dentro da Igreja, bailando, e que isto consumiria muita energia. Tinha pouco dinheiro. Entrei em uma mercearia e montei um farnel com bananas, pão de sal, pão doce, suco, biscoito, torradas... Não poderia ser alimento que fermentasse pois a ingestão do Daime pode entrar em conflito com o que foi ingerido causando peias violentas. Como o próprio nome sugere, é sempre bom evitar peias. Não é lá coisa muito boa para se passar. Eu já passei por algumas e cansegui realizar meu trabalho, desta vez, só com a luz do Daime.

Desci do ônibus, já no Recreio, e fui beirando o Mar até chegar na Igreja, o Céu estava limpo, as ondas quebrando na areia e pude evidenciar porque a Igreja recebe o nome de Jardim Praia da Beira Mar. Antes de chegar, a brisa marinha já vai limpando nosso pensamento e nos colocando em harmonia com as belezas da natureza, tão celebradas nos Hinos da Doutrina. O Cruzeiro do Sul se mostrava no Céu guiando os navegantes que buscavam seu caminho. Eu caminhava rumo ao Divino, ao Astral para realizar meu trabalho de campo.

Chegando na Igreja fui para o vestiário masculino, coloquei a farda e esperei para o início do trabalho que começa com a reza do terço. Posicionei-me na corrente em conformidade com todos os “irmãos” e “irmãs” que iam chegando e tomando seus lugares na reza do terço, depois de beberem o Santo Daime. Ao final da reza a corrente já estava praticamente formada. Sendo conduzido pelo “Padrinho” Nilson Caparelli, começou-se a cantar o Hinário a partir do Hino 96. O Hinário vai até o Hino 160 e depois ainda tem um complemento de mais 28 hinos que compõem uma parte do Hinário chamada de Nova Era. Antes de Cantar a Nova Era, foi realizado um intervalo de 45 minutos. Neste intervalo o Salão ficou vazio. Eu, que nesta Igreja conheço poucas pessoas, fiquei isolado, sozinho. Acabei indo caminhar pelo terreiro, no meio da Mata. Encontrei vários irmãos, parei, conversei, apliquei rapé. Logo após este período o “Padrinho” chamou à todos novamente. Cantamos a Nova Era.

No fim do trabalho apliquei mais um rapé e descolei uma carona para voltar para casa, em São Gonçalo. Foi uma jornada e tanto.

Em plena terça-feira, dia economicamente útil, homens e mulheres, de várias idades, realizaram, cada um, o seu trabalho espiritual, formando em conjunto a corrente que resulta em um coral de vozes da Doutrina do Santo Daime. Dentro destes trabalhos, existem relatos de acontecimentos de muitas coisas mágicas. Seriam a manifestação de Deus, mostrando a cada um o que cada um pediu ou precisa ver sobre si mesmo ou sobre o mundo.

Dentro do Trabalho as instruções são para que as pessoas meditem enquanto suas ações são voltadas para a execução dos ritos da Doutrina, que são simples: cantar e bailar de acordo com o que o hinário determina. Marcha, valsa ou mazurca. Enquanto as pessoas cantam e bailam, o exercício deve ser o de manter o pensamento dentro das “coisas da Doutrina”, fora das “coisas do mundo”. Não deve-se deixar o pensamento fugir para o que não for “a Doutrina”. Enquanto concentram-se no momento presente, no que está acontecendo naquele exato local e tempo, junto com a consagração da Bebida Sagrada, os participantes do ritual podem “chegar ao Astral” e ter as “mirações” que “o Daime vêm mostrar”. É assim que se dá a busca pelo sagrado na Doutrina do Santo Daime.

Tentei, como Evans-Pritchard, utilizar um método parecido com o que foi utilizado por ele para falar sobre “Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande”. Além de, como nos orienta Roberto DaMatta, “tornar o familiar em exótico”. Também observei que as pessoas passam por momentos liminaridades, quando estão à caminho da Igreja, pois neste momento de ida para o ritual já não estão mais ligadas diretamente ao mundo profano mas ainda não estão dentro do ritual, praticando a busca pelo sagrado. Ao chegar na Igreja, a egrégora de estar entre os “Irmãos”, com vestimenta igual, consagrando a mesma bebida e realizando os mesmos ritos coloca à todos os participantes em “communitas”. Logo após o trabalho, as pessoas ficam novamente em liminaridade ao retornarem ao mundo profano, pegando o trânsito, tirando a farda, comendo alguma coisa; e no dia seguinte novamente em communitas com o mundo profano. Uma constante estrutuação e desestruturação, um pertencimento e despertencimento, mas sempre colocado dentro do calendário de acontecimento dos trabalhos espirituais. Quando executamos os rituiais, com base no “ O Processo Ritual” do Victor W. Turner.

Referências Bibliográficas:

DURKHEIM, Émile; in: As Formas Elementares da Vida Religiosa, Livro III, Capítulo Primeiro: “O Culto Negativo e Suas Funções: os ritos ascéticos”. Ed. Paulinas.

ALVERGA, Alex Polari de; in: O Evangelho Segundo Sebastião Mota. CEFLURIS Edtorial, Amazonas, 1998.

FERNANDES, Vera Fróes; in: História do Povo Juramidam – Introdução à Cultura do Santo Daime; Manaus; Ed.: SUFRAMA; 1986.

Bibliografia:

TURNER, Victor W.; in: O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes, 1974.

EVANS-PRITCHARD, E. E.; in: Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Ed.: Zarar Editores. Rio de Janeiro.

Da Matta, Roberto Augusto; in: Trabalho de Campo ou Como ter Antropologial Blues.