sábado, 26 de novembro de 2011

Resenha Crítica de "Escola, Estado e Sociedade" da Bárbara Freitag

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Faculdade de Educação




Resenha Crítica ao Livro de Bárbara Freitag:

Escola, Estado & Sociedade.

Editora Moraes, 6ª Edição. 1986. São Paulo – SP

Aluno: Élbio Henrique Mendes Ribeiro

Sociologia da Educação – 2011/2



O livro Escola, Estado & Sociedade, da autora Bárbara Freitag, tenta expor uma interpretação sintetizada de um amplo quadro que tem como conteúdo as medidas educacionais implementadas pelo governo no período compreendido entre 1964 e 1975. Para tanto ela apresenta um enfoque sociológico buscando referência na sociologia e na economia da educação. Para justificar a posição adotada, ela revê os limites e as vantagens das teorias mais conhecidas.

Começa apresentando os dois pontos do conceito de educação que estão presentes nas teorias de quase todos os autores:

1 – “(...) a educação sempre expressa uma doutrina pedagógica, a qual implícita ou explicitamente se baseia em uma filosofia de vida, concepção de homem e sociedade (...)” (Freitag, 1986)

2 – “Numa realidade social concreta, o processo educacional se dá através de instituições específicas (família, igreja, escola, comunidade) que se tornam porta-vozes de uma determinada doutrina pedagógica.” (Idem)

O primeiro a sistematizar o papel da educação na sociedade, segundo Bárbara, foi Émile Durkheim, que não especifica os conteúdos educacionais e parte do conceito de homem egoísta que precisa ser moldado à vida em sociedade.

Segundo ela, para Durkheim, o processo educacional é mediatizado basicamente pela família, mas também por instituições do Estado como escola, universidades, etc. As gerações adultas suscitam na crença, através dessas instituições, “certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança particularmente se destina”. (Freitag, 1986)

Pressupõe-se que a experiência das gerações adultas é indispensável para a sobrevivência das gerações mais novas. A transmissão da experiência de uma geração à outra se dá no interesse da continuidade de uma sociedade dada. A autora nos mostra que, para Durkheim - ao formar as bases para a criação de uma sociologia, de um estudo da sociedade, usa o método de observação dos fatos sociais - a educação não poderia ser algo diferente. Desta maneira,

“A educação é um fato social. Se impõe coercitivamente ao indivíduo que, para seu próprio bem, sofrerá a ação educativa, integrando-se e solidarizando-se com o sistema social em que vive. Os conteúdos da educação são independentes das vontades individuais; são as normas e os valores desenvolvidos por uma certa sociedade (ou grupo social) em determinado momento histórico, que adquirem certa generalidade e com isso uma natureza própria, tornando-se assim “coisas exteriores” aos indivíduos.”.

Bárbara nos fala que na obra Social System, Talcott Parsons também se inspira em Durkheim. Para Parsons a educação é um mecanismo para que os sistemas sociais constituam-se e perpetuem-se. Mas Parsons não destaca a coerção do sistema como destaca Durkheim. Ele não apresenta os valores e as normas específicas de cada sistema. Para Durkheim e Parsons a educação é o know-how necessário transmitido entre as gerações para manter a estrutura e o funcionamento de uma sociedade.

Dewey e Mannheim divergem. Eles crêem na educação como um fator dinamizador das estruturas através do ato inovador do indivíduo. Dewey não separa educação e vida. Ao viver o indivíduo atua e sua atuação se transforma em processo educativo. O indivíduo se dispõe para novas ações depois de avaliar e reorganizar suas experiências.

A educação exigida por Dewey é uma doutrina pedagógica específica da sociedade democrática. Ela é um mecanismo de perpetuação de estruturas ainda imperfeitas: as democráticas. A base social que suporta estas estruturas é a da igualdade das chances, não a da igualdade entre seres humanos. Somos diferentes por natureza. Este modelo também não é questionado, criticado ou modificado. A ordem que reina é a da competição: assim os conflitos são democraticamente solucionados.

Mannheim amplia esta versão de Dewey. O controle racional e democrático da natureza e da história dos homens precisa existir. Existem técnicas sociais para exercerem este Controle. Entre elas está a educação. Estas técnicas existem para impedir o caos social que Mannheim assistiu na guerra. Os indivíduos, para isso, é necessário educar os indivíduos na regra do jogo democrático desde o início de suas vidas.

Passerom e Bourdier tem uma visão histórica da sociedade e do homem. Fazem uma crítica da sociedade capitalista (especificamente a francesa do século XX). Pegam a estrutura de classes como objeto. Aprofundam suas observações sobre a divisão social do trabalho baseada na apropriação diferencial dos meios de produção.

Para eles o sistema educacional reproduz a cultura e a estrutura de classes. Uma dessas funções se expressa nas “representações simbólicas” ou na ideologia, a outra na realidade social.

A função do sistema educacional é garantir a reprodução das relações de produção. Suas análises têm bases no materialismo histórico de Karl Marx. Para assegurar esta reprodução é necessário que, além das relações factuais, as relações simbólicas também sejam reproduzidas: as ideias que os homens fazem dessas relações. O sistema educacional garante “a transmissão hereditária do poder e dos privilégios, dissimulando sob a aparência de neutralidade o cumprimento desta função”. O sistema educacional, impondo o habitus da classe dominate, coopta membros isolados das outras classes. Isso garante a reprodução da ordem da estrutura de classes durante gerações, pois dá aos dominados a esperança de fazer-parte da classe dominante.

Bárbara também fala de Becker, Schultz, Edding e Slow. Segundo ela eles acreditam na correlação entre crescimento econômico e nível educacional dos membros de uma sociedade dada. Os fatores input (capital e trabalho), não bastaram para justificar o output (taxa de crescimento) registrado. Desde então se vem falando em investimento em recursos humanos, formação de capital humano, e formação de manpower. O planejamento educacional só vem a ser uma consequência lógica desses fatores.

Para Huiskien, os modelos da economia e do planejamento educacional nada mais fazem que ajustar o pessoal formado pelas escolas aos ciclos e ás crises geradas pela economia capitalista. Os economistas da educação reassentaram o modelo sistêmico de Parsons em suas bases econômicas. Ego define suas expectativas e suas ações em vista de alter porque espera que também alter satisfaça as suas. Neste sistema não se pode definir papeis isolados, sempre papeis complementares. A maximização das gratificações por parte dos indivíduos corresponde, em Parsons, à maximização dos lucros ambicionada pelos capitalistas. A posição será ocupada por quem por ela for mais habilitado, ela existe para o ocupante e o ocupante existe para ela. É uma forma de transpor a lei da oferta e da procura determinada pela economia. Isto dá equilíbrio ao sistema e referenda a meritocracia do modo de produção capitalista. É a mesma mão invisível que regulamenta a harmonia e a ordem dessas diferentes formas de competição. Esta teoria também responde pela igualdade de chances garantida a cada um, tanto no modelo social (de adquirir posições de prestígio e poder) como no modelo econômico (de adquirir mercadorias).

A economia da educação ajuda a disfarçar a essência do problema subjacente a estas ideologias da igualdade de chances e da troca de equivalentes. A autora nos conta que

“Marx mostrou em sua teoria do valor que de fato pode haver equivalência entre duas mercadorias desde que medidas com uma unidade padrão que seja comum a ambas: o tempo médio socialmente necessário absorvido para a sua produção. Por isso se pode trocar um saco de arroz por dois de feijão. A única mercadoria disponível no mercado em que a equivalência não funciona é em relação à própria força de trabalho. O seu valor de uso diverge do seu valor de troca. Pois ela, ao ser comprada no mercado por um valor, quando usada no processo de trabalho, produz mais valor do que custou ao comprador, o capitalista. Os indivíduos ou o Estado, investindo pois na força de trabalho, e justamente para aqueles setores e ramos em que há necessidade de trabalhadores mais qualificados, criam um valor. Este, no ato da troca, recebe seu equivalente (tempo socialmente necessário para produzi-lo) em salário. Mas na hora que essa força de trabalho é empregado no processo produtivo, ela gera mais valor do que o salário percebido. Este excedente não retorna ao indivíduo ou ao Estado que nele investiram para qualificá-lo, mas é apropriado pelo comprador, o empresário capitalista. (...) O salário corresponderá, em seu valor, ao tempo médio socialmente necessário para a produção e reprodução da força de trabalho, o que inclui sua qualificação para o trabalho. Mas esse salário é bem menor que o valor que o trabalho cria no tempo pelo qual vendeu sua força de trabalho. Sua produtividade face à sua maior qualificação não beneficia a ele, aumentando gradativamente seu salário, mas ao seu empregador que se apropria da diferença, mais-valia.” (Freitag, 1986)

Althusser, Poulantzas e Estabet fornecem um referencial teórico que realmente permite analisar, explicar e criticar o funcionamento da escola na moderna sociedade capitalista. Althusser, apesar de admitir a importância estratégica da educação como instrumento de dominação nas mãos da classe dominante, não vê nela importância estratégica como instrumento de libertação por parte da classe dominada. Lois Althusser introduz as discussões da escola como Aparelho Ideológico do Estado. Retomando as discussões sobre a alienação do trabalho feitas por Karl Marx, ele conclui que a escola

“(...) assegura que se reproduza as forças de trabalho, transmitindo as qualificações e o savoir faire necessários para o mundo do trabalho: e faz com que ao mesmo tempo os indivíduos se sujeitem à estrutura de classes. (...)” (Freitag, 1986)

“A reprodução da força de trabalho exige não somente uma reprodução da sua qualificação, mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, i. e., uma reprodução da sua submissão à ideologia dominante para os operários e uma reprodução de sua capacidade de bem manejar a ideologia dominante para os agentes da exploração e da repressão, a fim de assegurar, também pela palavra a dominação da classe dominante” (Althusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos; in: Freitag, 1986)

Mesmo assim, para Bárbara Freitag, falta-lhe a visão histórica e dialética dos Aparelhos Ideológicos do Estado e da escola.

Gramsci foi o teórico da superestrutura. Sua contribuição consiste na revisão do conceito de Estado. A sociedade civil assume novo sentido. Para Gramsci ela expressa o momento da persuasão e do consenso que, conjuntamente com o momento da repressão e da violência constroem a manutenção da estrutura de poder (Estado). A dominação se expressa sobre a forma de hegemonia na sociedade civil e na sociedade política sob a forma de ditadura. Elabora-se assim um conceito emancipatório de educação em que uma pedagogia do oprimido pode assumir força política, ao lado da conceituação da educação como instrumento de dominação e reprodução das relações sociais. Ele então diz que toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica: no caso da hegemonia burguesa, trata-se essencialmente do processo de aprendizado pelo qual a ideologia da classe dominante se realiza historicamente, transformando-se em senso comum.

POLÍTICA EDUCACIONAL:

UMA RETROSPECTIVA HISTÓRICA

Bárbara Freitag faz também uma retrospectiva histórica da política educacional brasileira. O primeiro período foi até 1929, quando houve a crise mundial que culminou com problemas econômicos para nossos produtos de exportação. Nossa estrutura educacional era baseada neste modelo exportador e tinha como função uma política educacional que formasse as pessoas para estas atividades econômicas de acordo com as classes sociais correspondentes. Nossa economia era baseada no modelo agroexportador implementado na época da colônia. Uma política educacional é quase inexistente. Não haviam instituições que compusessem a sociedade política e a sociedade civil era composta quase que exclusivamente pela igreja. A escola não tinha função de reprodução da força de trabalho. A estrutura social também se encontrava pouco diferenciada pois tinham os escravos, os senhores das casas grandes, os representantes da Coroa e da Colônia e o clero. A reprodução dessa estrutura de classe era garantida pela própria organização da produção. A escola como mecanismo de reprodução da estrutura de classes era dispensável.

O segundo período vai de 1930 a 1945. Implanta-se a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário. O ensino religioso torna-se facultativo. É introduzido o ensino profissionalizante. Tornam-se obrigatórias as disciplinas de educação moral e política. Cria-se o Ministério da Educação. Era o início do modelo econômico de substituição de importações.

De 1945 a 1964 é sancionado o texto definitivo da LDB. A LDB reflete as contradições e os conflitos que caracterizam as próprias frações de classe da burguesia brasileira. A realidade educacional gerada pela LDB traz a tona o problema da seletividade do sistema educacional. Há uma seletividade do sistema em relação à população em idade escolar. Uma escola neutra que tratasse todos os alunos de maneira igual, mesmo adotando certos critérios de aprovação e reprovação, selecionando os melhores, segundo inteligência, capacidade de trabalho, desempenho e outras habilidade, deveria manter uma relação percentual mais ou menos constante de alunos provenientes de diferentes classes sociais.

Ela também nos apresenta a Lei da Reforma do Ensino Superior. Com base no Plano Orientador da Universidade Brasileira, apresentados por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira,

“Propõe-se a departamentalização e, com isso, a extinção da cátedra, sugere-se a forma jurídico-administrativa da fundação, restringe-se a participação estudantil nos processos de decisão interna. Idéias originais, como as “Casas Nacionais de Línguas e Cultura” e emissora universitária, foram basicamente abandonadas.” (Freitag, 1986)

Esta reforma também permitiu o funcionamento experimental da UnB em 1962. E o Plano Qüinqüenal de 1975-1979.

“O texto da lei se movimenta em torno de dois princípios aparentemete contraditórios: a racionalização das estruturas e dos recursos e a “democratização” do ensino. A combinação do jargão tecnocrático dos economistas da educação e o liberal dos adeptos de objetivo: diminuir a pressão sobre a universidade, absorvendo o máximo dos candidatos ao vestibular (democratização) e discipliná-los posteriormente, alegando medidas de racionalização dos recursos.” (Freitag, 1986).

Em resumo, esta obra de Bárbara Feitag pode nos dar um perfeito diagnóstico histoiricisado das bases que constituem as políticas educacionais e as práticas pedagógicas brasileiras para que possamos entender a formação intelectual de nosso povo e construímos nossas políticas futuras para o desenvolvimento da educação.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O momento sagrado durante o Trabalho Espiritual de São Pedro, da Doutrina do Santo Daime.


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Ciências Sociais

Tópicos Especiais em Antropologia I

Professora: Márcia Contins

Aluno: Élbio Henrique Mendes Ribeiro

Trabalho de Campo:


O momento sagrado durante o Trabalho Espiritual de São Pedro, da

Doutrina do Santo Daime.

Neste texto pretendo apresentar minha experiência de participação do Trabalho Espiritual de São Pedro, da Doutrina do Santo Daime, tentando mostrar o contraste entre o momento sagrado e o profano, entre a vida religiosa e a vida cotidiana, e como se dá a busca pelo sagrado dentro da Doutrina através da execução do seu ritual.

A Doutrina do Santo Daime tem diversos tipos de Trabalhos Espirituais. Aqui falarei apenas sobre o Trabalho Bailado, executado no período de Festival, em homenagem à São Pedro. Este trabalho acontece do dia 28 de junho para o dia 29.

“Os seres sagrados são, por definição, seres separados. O que os caracteriza, é que, entre eles e os seres profanos, existe solução de continuidade. Normalmente, uns são externos aos outros. Todo um conjunto de ritos tem por objetivo efetivar esse estado de separação que é essencial.” (Durkheime)

“Todos aqueles que estiverem ouvindo estas verdades que são ditas pelos hinos, saibam que esta palavra não é nossa. Porque ela vem, como Ele diz: sai da minha boca e transmite em ti. O hino é uma coisa que deslapa e entra na consciência da pessoa pela intuição, ou por voz, em conformidade com o tipo do aparelho receptor, não é? O hino vem. Mas ele não é ele, aquela matéria que tá trazendo aquilo, é o Eu de lá do alto que tá mandando uma mensagem para o Eu interno. Se o Eu interno está bem desenvolvido, ele logo recebe. Se não, ele está ainda muito emperrado, tá ainda dormindo, não saiu de cima da sepultura, os anjos não vem revelar nada pra Ele. É que este Eu interno não está ouvindo nada. Ainda está morto. Daí é que eu sempre digo: ‘Quem não acordar agora, danou-se!’. É preciso aproveitar essas ervas sagradas que nós temos e que nos levam às alturas espirituais. Por elas é que a vida espiritual baixa sobre nós, material, em qualquer lugar que nós estiver. Não é só dentro de uma casa. É em qualquer lugar que nós formar e consagrar a nossa bebida, e as nossas plantas espirituais, nós vamos ao astral, que fica longe daqui e ao mesmo tempo fica bem perto daqui. Porque o corpo fica aonde fica, que é uma massa pesada. Mas o espírito vai aonde quer, porque ele sempre volta. Ninguém sabe donde ele veio, nem pra onde vai. Só o corpo, quando está bem desenvolvido e entrosado com o Eu interno, sabe o que ele diz” (Padrinho Sebastião; in: Alverga)

Meu trabalho sobre ritual foi realizado com base no “Trabalho de São Pedro da Doutrina do Santo Daime”. Este trabalho começou as 19:00hs do dia 28 de junho e foi madrugada adentro cantando um dos maiores Hinários da Doutrina, o Cruzeirinho do Padrinho Alfredo. Este trabalho acontece simultâneamente em todas as Igrejas que seguem a Linha do Padrinho Sebastião Mota em todo o mundo.

Sou Fardado na Doutrina e não seria elegante participar do trabalho sem Farda, o que me deu um certo trabalho. Cheguei em casa na noite do dia 27 e tive que lavar a calça do terno da minha Farda Branca e colocá-la para secar de um dia para o outro. Também tive que polir minha Estrela, que estava sem brilho. Um Fardado deve se apresentar impecável na “corrente” para o Trabalho de Juramidam.

A Doutrina do Santo Daime foi fundada em 1930, em Rio Branco, no Acre, por Raimundo Irineu Serra após um longo período de iniciação com a ayhuasca, na selva fronteriça do Brasil com o Peru, onde a bebida era utilizada em rituais mágicos-religiosos por grupos indígenas, desde tempos imemoriais. Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Luiz de Ferré, no estado do Maranhão. Chegou ao acre com 20 anos, integrando o movimento migratório de nordestinos para trabalhar na extração do látex, trazidos pela propaganda de enriquecimento fácil e fugindo da seca, que desde o final do século XIX castigava o nordeste brasileiro. Enfrentando o meio ambiente hostil e tendo que se adaptar a um novo mundo a duras penas, a cultura do homem nordestino vai fundir-se com a cultura indígena da região.

Chegando de Manaus, Irineu Serra vai atracar no porto Xapuri (AC), em 1912. Alí residiu dois anos, indo trabalhar posteriormente nos seringais de Brasiléia durante três anos e em seguida em Sena Madureira, onde residiu por mais três anos. Foi durante esse período que trabalhou na “Comissão de Limites”, órgão do governo federal encarregado da delimitação das fronteiras do Acre com a Bolívia e o Peru, aprofundando assim seu conhecimento nas matas acreanas.

No processo de aprendizagem da utilização da ayhuasca com índios peruanos, mestre Irineu aprendeu a reconhecer o cipó jagube, a folha chacrona (rainha) na floresta e a preparar a bebida. Com a utilização da ayhuasca, intensificou-se para ele a aparição de uma mulher chamada Clara, apresentando-se como Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta. Seguindo as instruções dela, mestre Irineu recebeu o nome de Santo Daime para a Bebida e uma série de regras que constiruíram posteriormente os fundamentos do ritual do Santo Daime.

A origem da palavra Daime vem da revelação da Rainha da Floresta, quando ela esclarece para o mestre que aquela bebida tinha muitos nomes, mas o nome verdadeiro era o próprio verbo divino Dar, Dar para os que necessitassem e pedissem, originando assim o nome Daime. Daime amor, Daime luz, Daime força, são expressões características da Doutrina do Santo Daime. A Rainha da Floresta concedeu-lhe a patente de Chefe do Império Juramidam, e o identificam com entidades espirituais incaicas precursoras na utilização do Santo Daime.

O mestre Irineu passa por uma fase de iniciação no interior da Floresta, típica de xamãs indígenas, onde a disciplina, o jejum as privações e abstinência sexual são condições indispensáveis na formação do xamã, que com isso passa a ter conhecimento, poderes de cura, vidência e possibilidade de comunicação com os espíritos. A missão do mestre Irineu é a missão de Juramidam, entidade divina que representa Cristo, revelando os ensinamentos da doutrina através dos hinos, que correspondem a Bíblia Sagrada. Um hinário é o conjunto de hinos – versos, musicados simples – recebidos por uma pessoa através da capacitação divina, é a linguagem de comunicação com o astral, onde estão todos os seres divinos.

“O Santo Daime tem em seus rituais tipos diferentes de trabalho: as Festas Oficiais (ou Festival), Trabalhos de Concentração, Santa Missa e Trabalhos de Cura.

O Festival acompanha o calendário cristão, cuja comemoração inicia-se na véspera à noite, prolongando-se até o amanhecer. O ano religioso da doutrina inicia-se no dia 06 de janeiro, em homenagem aos Três Reis do Oriente, é uma cerimônia especial onde se entrega o trabalho do ano que passou ao mestre ou pessoa por ele designada e se recebe o trabalho espiritual do ano que se inicia. Seguem-se as datas de 20 de janeiro (São Sebastião), 13 de junho (Santo Antônio), 24 de junho (São João Batista), 28 de junho (São Pedro) 02 de novembro (dia de finados), 15 de dezembro (aniversário do mestre Irineu) e 25 de dezembro (nascimento de Jesus Cristo), 31 de Dezembro (Ano Novo).

O ritual do Festival começa às 19:00h, quando reza-se um terço e em seguida é servido o Santo Daime na medida de um copo pequeno para os adultos e meio para as crianças. Lê-se a consagração do aposento e dá-se início ao hinário previamente escolhido, que é cantado sempre marcado pelo rítmo de maracás, acompanhando o movimento de deslocar-se para a direita e para a esquerda. Os homens e as mulheres ficam separados formando o que se chama correntes masculina e feminina, só podendo homens e mulheres conversarem no intervalo, que ocorre à meia noite, estendendo-se por uma hora aproximadamente. Geralmente é no segundo tempo, quando reinicia o hinário do hino onde o Trabalho parou, que os músicos começam a tocar seus instrumentos.” (FERNANDES)

Realizei o Trabalho na Igreja Jardim Praia da Beira Mar, uma linda Igreja que fica na Prainha, Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro. É muito distante do Centro da Cidade, tive que sair mais cedo do meu trabalho. E é aí que começa a diferenciação entre o momento sagrado e o profano. O momento profano está ligado à coisas do Mundo, que na Doutrina são chamadas de “vida material”. O momento sagrado está ligado ao divino, à busca de Deus, ao “Astral”.

Saindo do trabalho (da vida material), me dei por conta de que passaria ao menos 08 horas dentro da Igreja, bailando, e que isto consumiria muita energia. Tinha pouco dinheiro. Entrei em uma mercearia e montei um farnel com bananas, pão de sal, pão doce, suco, biscoito, torradas... Não poderia ser alimento que fermentasse pois a ingestão do Daime pode entrar em conflito com o que foi ingerido causando peias violentas. Como o próprio nome sugere, é sempre bom evitar peias. Não é lá coisa muito boa para se passar. Eu já passei por algumas e cansegui realizar meu trabalho, desta vez, só com a luz do Daime.

Desci do ônibus, já no Recreio, e fui beirando o Mar até chegar na Igreja, o Céu estava limpo, as ondas quebrando na areia e pude evidenciar porque a Igreja recebe o nome de Jardim Praia da Beira Mar. Antes de chegar, a brisa marinha já vai limpando nosso pensamento e nos colocando em harmonia com as belezas da natureza, tão celebradas nos Hinos da Doutrina. O Cruzeiro do Sul se mostrava no Céu guiando os navegantes que buscavam seu caminho. Eu caminhava rumo ao Divino, ao Astral para realizar meu trabalho de campo.

Chegando na Igreja fui para o vestiário masculino, coloquei a farda e esperei para o início do trabalho que começa com a reza do terço. Posicionei-me na corrente em conformidade com todos os “irmãos” e “irmãs” que iam chegando e tomando seus lugares na reza do terço, depois de beberem o Santo Daime. Ao final da reza a corrente já estava praticamente formada. Sendo conduzido pelo “Padrinho” Nilson Caparelli, começou-se a cantar o Hinário a partir do Hino 96. O Hinário vai até o Hino 160 e depois ainda tem um complemento de mais 28 hinos que compõem uma parte do Hinário chamada de Nova Era. Antes de Cantar a Nova Era, foi realizado um intervalo de 45 minutos. Neste intervalo o Salão ficou vazio. Eu, que nesta Igreja conheço poucas pessoas, fiquei isolado, sozinho. Acabei indo caminhar pelo terreiro, no meio da Mata. Encontrei vários irmãos, parei, conversei, apliquei rapé. Logo após este período o “Padrinho” chamou à todos novamente. Cantamos a Nova Era.

No fim do trabalho apliquei mais um rapé e descolei uma carona para voltar para casa, em São Gonçalo. Foi uma jornada e tanto.

Em plena terça-feira, dia economicamente útil, homens e mulheres, de várias idades, realizaram, cada um, o seu trabalho espiritual, formando em conjunto a corrente que resulta em um coral de vozes da Doutrina do Santo Daime. Dentro destes trabalhos, existem relatos de acontecimentos de muitas coisas mágicas. Seriam a manifestação de Deus, mostrando a cada um o que cada um pediu ou precisa ver sobre si mesmo ou sobre o mundo.

Dentro do Trabalho as instruções são para que as pessoas meditem enquanto suas ações são voltadas para a execução dos ritos da Doutrina, que são simples: cantar e bailar de acordo com o que o hinário determina. Marcha, valsa ou mazurca. Enquanto as pessoas cantam e bailam, o exercício deve ser o de manter o pensamento dentro das “coisas da Doutrina”, fora das “coisas do mundo”. Não deve-se deixar o pensamento fugir para o que não for “a Doutrina”. Enquanto concentram-se no momento presente, no que está acontecendo naquele exato local e tempo, junto com a consagração da Bebida Sagrada, os participantes do ritual podem “chegar ao Astral” e ter as “mirações” que “o Daime vêm mostrar”. É assim que se dá a busca pelo sagrado na Doutrina do Santo Daime.

Tentei, como Evans-Pritchard, utilizar um método parecido com o que foi utilizado por ele para falar sobre “Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande”. Além de, como nos orienta Roberto DaMatta, “tornar o familiar em exótico”. Também observei que as pessoas passam por momentos liminaridades, quando estão à caminho da Igreja, pois neste momento de ida para o ritual já não estão mais ligadas diretamente ao mundo profano mas ainda não estão dentro do ritual, praticando a busca pelo sagrado. Ao chegar na Igreja, a egrégora de estar entre os “Irmãos”, com vestimenta igual, consagrando a mesma bebida e realizando os mesmos ritos coloca à todos os participantes em “communitas”. Logo após o trabalho, as pessoas ficam novamente em liminaridade ao retornarem ao mundo profano, pegando o trânsito, tirando a farda, comendo alguma coisa; e no dia seguinte novamente em communitas com o mundo profano. Uma constante estrutuação e desestruturação, um pertencimento e despertencimento, mas sempre colocado dentro do calendário de acontecimento dos trabalhos espirituais. Quando executamos os rituiais, com base no “ O Processo Ritual” do Victor W. Turner.

Referências Bibliográficas:

DURKHEIM, Émile; in: As Formas Elementares da Vida Religiosa, Livro III, Capítulo Primeiro: “O Culto Negativo e Suas Funções: os ritos ascéticos”. Ed. Paulinas.

ALVERGA, Alex Polari de; in: O Evangelho Segundo Sebastião Mota. CEFLURIS Edtorial, Amazonas, 1998.

FERNANDES, Vera Fróes; in: História do Povo Juramidam – Introdução à Cultura do Santo Daime; Manaus; Ed.: SUFRAMA; 1986.

Bibliografia:

TURNER, Victor W.; in: O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes, 1974.

EVANS-PRITCHARD, E. E.; in: Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Ed.: Zarar Editores. Rio de Janeiro.

Da Matta, Roberto Augusto; in: Trabalho de Campo ou Como ter Antropologial Blues.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Doutrina do Santo Daime e o Céu na Terra (Territorialidade, Território e Espaço)

Neste artigo pretendo apresentar como a territorialidade determina o território e o espaço utilizando como estudo de caso minha esperiência como membro da Doutrina do Santo Daime.

A Doutrina do Santo Daime foi fundada em 1930, em Rio Branco, no Acre, por Raimundo Irineu Serra após um longo período de iniciação com a ayhuasca, na selva fronteriça do Brasil com o Peru, onde a bebida era utilizada em rituais mágicos-religiosos por grupos indígenas, desde tempos imemoriais.


Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Luiz de Ferré, no estado do Maranhão. Chegou ao acre com 20 anos, integrando o movimento migratório de nordestinos para trabalhar na extração do látex, trazidos pela propaganda de enriquecimento fácil e fugindo da seca, que desde o final do século XIX castigava o nordeste brasileiro. Enfrentando o meio ambiente hostil e tendo que se adaptar a um novo mundo a duras penas, a cultura do homem nordestino vai fundir-se com a cultura indígena da região.

Chegando de Manaus, Irineu Serra vai atracar no porto Xapuri (AC), em 1912. Alí residiu dois anos, indo trabalhar posteriormente nos seringais de Brasiléia durante três anos e em seguida em Sena Madureira, onde residiu por mais três anos. Foi durante esse período que trabalhou na “Comissão de Limites”, órgão do governo federal encarregado da delimitação das fronteiras do Acre com a Bolívia e o Peru, aprofundando assim seu conhecimento nas matas acreanas.

No processo de aprendizagem da utilização da ayhuasca com índios peruanos, mestre Irineu aprendeu a reconhecer o cipó jagube, a folha chacrona (rainha) na floresta e a preparar a bebida. Com a utilização da ayhuasca, intensificou-se para ele a aparição de uma mulher chamada Clara, apresentando-se como Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta. Seguindo as instruções dela, mestre Irineu recebeu o nome de Santo Daime para a Bebida e uma série de regras que constiruíram posteriormente os fundamentos do ritual do Santo Daime.

A origem da palavra Daime vem da revelação da Rainha da Floresta, quando ela esclarece para o mestre que aquela bebida tinha muitos nomes, mas o nome verdadeiro era o próprio verbo divino Dar, Dar para os que necessitassem e pedissem, originando assim o nome Daime. Daime amor, Daime luz, Daime força, são expressões características da Doutrina do Santo Daime. A Rainha da Floresta concedeu-lhe a patente de Chefe do Império Juramidam, e o identificam com entidades espirituais incaicas precursoras na utilização do Santo Daime.

O mestre Irineu passa por uma fase de iniciação no interior da Floresta, típica de xamãs indígenas, onde a disciplina, o jejum as privações e abstinência sexual são condições indispensáveis na formação do xamã, que com isso passa a ter conhecimento, poderes de cura, vidência e possibilidade de comunicação com os espíritos. A missão do mestre Irineu é a missão de Juramidam, entidade divina que representa Cristo, revelando os ensinamentos da doutrina através dos hinos, que correspondem a Bíblia Sagrada. Um hinário é o conjunto de hinos – versos, musicados simples – recebidos por uma pessoa através da capacitação divina, é a linguagem de comunicação com o astral, onde estão todos os seres divinos.

A doutrina de Juramidam é resultante da união de características religiosas dos três elementos étnicos formadores da cultura brasileira: o índio, o negro e o branco. Raimundo Irineu Serra reinterpreta a sua cultura, saindo da condição de seringueiro para a situação de “escolhido”. A partir daí sua vida ganha novo significado, o aspecto material passa a ser secundário e o espiritual o mais importante: é o homem simples do povo que recria valores e se liberta da exploração da vida material.

O ritual

O Santo Daime tem em seus rituais tipos diferentes de trabalho: as Festas Oficiais (ou Festival), Trabalhos de Concentração, Santa Missa e Trabalhos de Cura.

O Festival acompanha o calendário cristão, cuja comemoração inicia-se na véspera à noite, prolongando-se até o amanhecer. O ano religioso da doutrina inicia-se no dia 06 de janeiro, em homenagem aos Três Reis do Oriente, é uma cerimônia especial onde se entrega o trabalho do ano que passou ao mestre ou pessoa por ele designada e se recebe o trabalho espiritual do ano que se inicia. Seguem-se as datas de 20 de janeiro (São Sebastião), 24 de junho (São João Batista), 02 de novembro (dia de finados), 15 de dezembro (aniversário do mestre Irineu) e 25 de dezembro (nascimento de Jesus Cristo).

O ritual do Festival começa às 18:00h, quando reza-se um terço e em seguida é servido o Santo Daime na medida de um copo pequeno para os adultos e meio para as crianças. Lê-se a consagração do aposento e dá-se início ao hinário previamente escolhido, que é cantado sempre marcado pelo rítmo de maracás, acompanhando o movimento de deslocar-se para a direita e para a esquerda. Os homens e as mulheres ficam separados formando o que se chama correntes masculina e feminina, só podendo homens e mulheres conversarem no intervalo, que ocorre à meia noite, estendendo-se por uma hora aproximadamente. Geralmente é no segundo tempo, quando reinicia o hinário do hino onde o Trabalho parou, que os músicos começam a tocar seus instrumentos.

A Farda

O Santo Daime possui uma vestimenta própria para cada trabalho: farda branca para os Trabalhos Oficiais e Farda Azul para os demais Trabalhos. Para as mulheres a farda branca constitui-se num vestido branco pregueado com um saiote verde mais curto pregueado por cima do vestido, faixa verde atravessada no peito com o símbolo de Salomão ao lado direito e no lado esquerdo a “rosa” para as mulheres e a palminha para as moças, juntamente com fitas compridas de várias cores, que são colocadas no ombro esquerdo. Na cabeça uma coroa bordada com lantejoulas brancas. Completando a farda tênis e meia branca. Os homens usam camisa, paletó, calça, meia e sapatos brancos, uma gravata azul e o símbolo de Salomão no lado esquerdo do peito para os solteiros e no lado direito para os casados.

A farda azul é mais simples, muito semelhante ao uniforme utilizado nas escolas: para as mulheres, saia azul pregueada, blusa branca com as iniciais do Centro bordadas no bolso, gravata borboleta azul, tênis azul e meia branca. Para os homens, calça azul, camisa branca, gravata preta, tênis azul e meia branca com a estrela de Salomão presa da mesma forma que a farda branca.

A Doutrina tem muitoDmais detalhes que não caberão aqui neste trabalho, mas as descrições acima tem como objetivo apresentar um pouco das características desta cultura que tem como principal missão a iluminação da alma de seus praticantes. A Doutrina do Santo Daime é um caminho para a salvação, a libertação dos vícios, para a vida eterna. Isto é descrito em muitos hinos.

Os hinos basicamente ensinam como os praticantes da Doutrina devem se comportar dentro e fora da Igreja (dos trabalhos espirituais). Muitos hinos relatam que a mansidão, a humildade, a caridade, a ajuda mútua, a união, a fé, a perceverança, o amor e outros sentimentos, emoções e valores devem ser cultivados e praticados pelos integrantes.

Ocorre que existe um mundo onde estes valores não são cultivados, um mundo onde os valores acima colocados estão totalmente longe de serem considerados como uma forma de avanço. Este mundo fora dos valores da Igreja são considerados como a “ilusão”. Os integrantes da Doutrina são obrigados a viver neste mundo de valores contrários aos que são praticados dentro da Doutrina. Mas como praticar estes valores em um mundo tão violento e entregue à maldade? Somente encontrando um local onde todas as pessoas que buscam essa prática possam se encontrar e dela comungar. Esses locais são as Igrejas.

As Igrejas do Santo Daime são espaços onde os praticantes constroem salões para a prática dos trabalhos espirituais. Geralmente estes salões são localizados dentro de espaços muito arborizados, de mata fechada, em reservas ecológicas com fauna e flora nativas e terrenos sem especulação imobiliária ou outro tipo de exploração econômica que cause alguma forma degradação ambiental. O respeito à natureza e a convivência e aprendizado com ela constituem também a base de valor dos praticantes da Doutrina.

A Doutrina está expandida por todo o mundo atualmente, em todos os continentes, na Holanda, no Hawaii, no Japão... E em todos estes lugares essas características, assim como a base da tradição e do ritual, são mantidos. Ou seja, seja lá em qual espaço físico for, a Doutrina mantém-se como uma busca pela integração do homem com a natureza vivendo com ela em harmonia. A transformação do espaço se dá com base nesses valores que criam os territórios das Igrejas que recebem o nome de Céu. No Rio de Janeiro podemos exemplificar a delimitação destes territórios com algumas Igrejas como o Céu do Mar, em São Conrado, Céu da Lua Branca, em Gaudinópolis – Nova Friburgo e o Céu da Montanha, no Vilarejo da Ponte dos Cachorros em Visconde de Mauá. Todas elas são Igrejas que se formarão pela vinda de pessoas que conheceram e conviveram com o Padrinho Sebastião, discípulo do mestre Irineu, que com ele aprendeu todos os fundamentos da Doutrina e fundou o Céu do Mapiá, no coração da Amazônia. Estas três Igrejas acima citadas e situadas no estado do Rio de Janeiro foram as primeiras Igrejas fundadas fora da floresta amazônica.

Com os nomes de Céu percebe-se claramente que os integrantes da Doutrina desejam deixar o espaço físico o mais natural possível e tornar estes espaços um pedaço do paraíso divino aqui ainda no Planeta Terra, antes do encontro com o Pai Eterno da Criação e da salvação da alma. Desta maneira podemos ver que o espaço é apropriado por um conjunto de pessoas que o dominam e fazem dele o uso de acordo com seus simbolos, crenças e valores. A aproproacão seria o termo mais indicado para utilizarmos em se tratando da Doutrina do Santo Daime pois está relacionado à vivência desses grupos naquele espaço físico e não com um valor de troca que está mais ligado ao termo de dominação. (Haesbart). A construção deste paraíso só é possível a partir da territorialidade praticada e cultivada por seus integrantes, que transformam os teritórios e os denominam de Céu. E é a territorialidade que transforma estes territórios em Céu pois ela, a territorialidade, está vinculada à forma como os daimistas, no caso aqui descrito, se organizam no espaço e à ele dão significado com base na cultura da Doutrina (Haesbart) que, como nos mostra o Padrinho Alfredo Mota, “o objetivo do daimista é uma vida unida, uma vida sem ambição e com compreensão espiritual. Atingir o Terceiro Milênio é atingir o tempo do Divino Espírito Santo. Não é só o tempo do espírito, é o tempo do divino Espírito Santo. Eu acredito numa vida muito educada, uma vida já fora de muitas ilusões. Isso porque a própria ilusão mostra que ou ela se acaba, ou cada um por si próprio se destrói.”. (Polari)

Desta forma podemos evidenciar, com o exemplo da doutrina do Santo Daime, que é a territorialidade, baseada em práticas culturais objetivas (concretas) e subjetivas (valores) que transformam o espaço e determinam os territórios da Doutrina que são como o Céu na Terra, o Paraíso.