quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Doutrina do Santo Daime e o Céu na Terra (Territorialidade, Território e Espaço)

Neste artigo pretendo apresentar como a territorialidade determina o território e o espaço utilizando como estudo de caso minha esperiência como membro da Doutrina do Santo Daime.

A Doutrina do Santo Daime foi fundada em 1930, em Rio Branco, no Acre, por Raimundo Irineu Serra após um longo período de iniciação com a ayhuasca, na selva fronteriça do Brasil com o Peru, onde a bebida era utilizada em rituais mágicos-religiosos por grupos indígenas, desde tempos imemoriais.


Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Luiz de Ferré, no estado do Maranhão. Chegou ao acre com 20 anos, integrando o movimento migratório de nordestinos para trabalhar na extração do látex, trazidos pela propaganda de enriquecimento fácil e fugindo da seca, que desde o final do século XIX castigava o nordeste brasileiro. Enfrentando o meio ambiente hostil e tendo que se adaptar a um novo mundo a duras penas, a cultura do homem nordestino vai fundir-se com a cultura indígena da região.

Chegando de Manaus, Irineu Serra vai atracar no porto Xapuri (AC), em 1912. Alí residiu dois anos, indo trabalhar posteriormente nos seringais de Brasiléia durante três anos e em seguida em Sena Madureira, onde residiu por mais três anos. Foi durante esse período que trabalhou na “Comissão de Limites”, órgão do governo federal encarregado da delimitação das fronteiras do Acre com a Bolívia e o Peru, aprofundando assim seu conhecimento nas matas acreanas.

No processo de aprendizagem da utilização da ayhuasca com índios peruanos, mestre Irineu aprendeu a reconhecer o cipó jagube, a folha chacrona (rainha) na floresta e a preparar a bebida. Com a utilização da ayhuasca, intensificou-se para ele a aparição de uma mulher chamada Clara, apresentando-se como Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta. Seguindo as instruções dela, mestre Irineu recebeu o nome de Santo Daime para a Bebida e uma série de regras que constiruíram posteriormente os fundamentos do ritual do Santo Daime.

A origem da palavra Daime vem da revelação da Rainha da Floresta, quando ela esclarece para o mestre que aquela bebida tinha muitos nomes, mas o nome verdadeiro era o próprio verbo divino Dar, Dar para os que necessitassem e pedissem, originando assim o nome Daime. Daime amor, Daime luz, Daime força, são expressões características da Doutrina do Santo Daime. A Rainha da Floresta concedeu-lhe a patente de Chefe do Império Juramidam, e o identificam com entidades espirituais incaicas precursoras na utilização do Santo Daime.

O mestre Irineu passa por uma fase de iniciação no interior da Floresta, típica de xamãs indígenas, onde a disciplina, o jejum as privações e abstinência sexual são condições indispensáveis na formação do xamã, que com isso passa a ter conhecimento, poderes de cura, vidência e possibilidade de comunicação com os espíritos. A missão do mestre Irineu é a missão de Juramidam, entidade divina que representa Cristo, revelando os ensinamentos da doutrina através dos hinos, que correspondem a Bíblia Sagrada. Um hinário é o conjunto de hinos – versos, musicados simples – recebidos por uma pessoa através da capacitação divina, é a linguagem de comunicação com o astral, onde estão todos os seres divinos.

A doutrina de Juramidam é resultante da união de características religiosas dos três elementos étnicos formadores da cultura brasileira: o índio, o negro e o branco. Raimundo Irineu Serra reinterpreta a sua cultura, saindo da condição de seringueiro para a situação de “escolhido”. A partir daí sua vida ganha novo significado, o aspecto material passa a ser secundário e o espiritual o mais importante: é o homem simples do povo que recria valores e se liberta da exploração da vida material.

O ritual

O Santo Daime tem em seus rituais tipos diferentes de trabalho: as Festas Oficiais (ou Festival), Trabalhos de Concentração, Santa Missa e Trabalhos de Cura.

O Festival acompanha o calendário cristão, cuja comemoração inicia-se na véspera à noite, prolongando-se até o amanhecer. O ano religioso da doutrina inicia-se no dia 06 de janeiro, em homenagem aos Três Reis do Oriente, é uma cerimônia especial onde se entrega o trabalho do ano que passou ao mestre ou pessoa por ele designada e se recebe o trabalho espiritual do ano que se inicia. Seguem-se as datas de 20 de janeiro (São Sebastião), 24 de junho (São João Batista), 02 de novembro (dia de finados), 15 de dezembro (aniversário do mestre Irineu) e 25 de dezembro (nascimento de Jesus Cristo).

O ritual do Festival começa às 18:00h, quando reza-se um terço e em seguida é servido o Santo Daime na medida de um copo pequeno para os adultos e meio para as crianças. Lê-se a consagração do aposento e dá-se início ao hinário previamente escolhido, que é cantado sempre marcado pelo rítmo de maracás, acompanhando o movimento de deslocar-se para a direita e para a esquerda. Os homens e as mulheres ficam separados formando o que se chama correntes masculina e feminina, só podendo homens e mulheres conversarem no intervalo, que ocorre à meia noite, estendendo-se por uma hora aproximadamente. Geralmente é no segundo tempo, quando reinicia o hinário do hino onde o Trabalho parou, que os músicos começam a tocar seus instrumentos.

A Farda

O Santo Daime possui uma vestimenta própria para cada trabalho: farda branca para os Trabalhos Oficiais e Farda Azul para os demais Trabalhos. Para as mulheres a farda branca constitui-se num vestido branco pregueado com um saiote verde mais curto pregueado por cima do vestido, faixa verde atravessada no peito com o símbolo de Salomão ao lado direito e no lado esquerdo a “rosa” para as mulheres e a palminha para as moças, juntamente com fitas compridas de várias cores, que são colocadas no ombro esquerdo. Na cabeça uma coroa bordada com lantejoulas brancas. Completando a farda tênis e meia branca. Os homens usam camisa, paletó, calça, meia e sapatos brancos, uma gravata azul e o símbolo de Salomão no lado esquerdo do peito para os solteiros e no lado direito para os casados.

A farda azul é mais simples, muito semelhante ao uniforme utilizado nas escolas: para as mulheres, saia azul pregueada, blusa branca com as iniciais do Centro bordadas no bolso, gravata borboleta azul, tênis azul e meia branca. Para os homens, calça azul, camisa branca, gravata preta, tênis azul e meia branca com a estrela de Salomão presa da mesma forma que a farda branca.

A Doutrina tem muitoDmais detalhes que não caberão aqui neste trabalho, mas as descrições acima tem como objetivo apresentar um pouco das características desta cultura que tem como principal missão a iluminação da alma de seus praticantes. A Doutrina do Santo Daime é um caminho para a salvação, a libertação dos vícios, para a vida eterna. Isto é descrito em muitos hinos.

Os hinos basicamente ensinam como os praticantes da Doutrina devem se comportar dentro e fora da Igreja (dos trabalhos espirituais). Muitos hinos relatam que a mansidão, a humildade, a caridade, a ajuda mútua, a união, a fé, a perceverança, o amor e outros sentimentos, emoções e valores devem ser cultivados e praticados pelos integrantes.

Ocorre que existe um mundo onde estes valores não são cultivados, um mundo onde os valores acima colocados estão totalmente longe de serem considerados como uma forma de avanço. Este mundo fora dos valores da Igreja são considerados como a “ilusão”. Os integrantes da Doutrina são obrigados a viver neste mundo de valores contrários aos que são praticados dentro da Doutrina. Mas como praticar estes valores em um mundo tão violento e entregue à maldade? Somente encontrando um local onde todas as pessoas que buscam essa prática possam se encontrar e dela comungar. Esses locais são as Igrejas.

As Igrejas do Santo Daime são espaços onde os praticantes constroem salões para a prática dos trabalhos espirituais. Geralmente estes salões são localizados dentro de espaços muito arborizados, de mata fechada, em reservas ecológicas com fauna e flora nativas e terrenos sem especulação imobiliária ou outro tipo de exploração econômica que cause alguma forma degradação ambiental. O respeito à natureza e a convivência e aprendizado com ela constituem também a base de valor dos praticantes da Doutrina.

A Doutrina está expandida por todo o mundo atualmente, em todos os continentes, na Holanda, no Hawaii, no Japão... E em todos estes lugares essas características, assim como a base da tradição e do ritual, são mantidos. Ou seja, seja lá em qual espaço físico for, a Doutrina mantém-se como uma busca pela integração do homem com a natureza vivendo com ela em harmonia. A transformação do espaço se dá com base nesses valores que criam os territórios das Igrejas que recebem o nome de Céu. No Rio de Janeiro podemos exemplificar a delimitação destes territórios com algumas Igrejas como o Céu do Mar, em São Conrado, Céu da Lua Branca, em Gaudinópolis – Nova Friburgo e o Céu da Montanha, no Vilarejo da Ponte dos Cachorros em Visconde de Mauá. Todas elas são Igrejas que se formarão pela vinda de pessoas que conheceram e conviveram com o Padrinho Sebastião, discípulo do mestre Irineu, que com ele aprendeu todos os fundamentos da Doutrina e fundou o Céu do Mapiá, no coração da Amazônia. Estas três Igrejas acima citadas e situadas no estado do Rio de Janeiro foram as primeiras Igrejas fundadas fora da floresta amazônica.

Com os nomes de Céu percebe-se claramente que os integrantes da Doutrina desejam deixar o espaço físico o mais natural possível e tornar estes espaços um pedaço do paraíso divino aqui ainda no Planeta Terra, antes do encontro com o Pai Eterno da Criação e da salvação da alma. Desta maneira podemos ver que o espaço é apropriado por um conjunto de pessoas que o dominam e fazem dele o uso de acordo com seus simbolos, crenças e valores. A aproproacão seria o termo mais indicado para utilizarmos em se tratando da Doutrina do Santo Daime pois está relacionado à vivência desses grupos naquele espaço físico e não com um valor de troca que está mais ligado ao termo de dominação. (Haesbart). A construção deste paraíso só é possível a partir da territorialidade praticada e cultivada por seus integrantes, que transformam os teritórios e os denominam de Céu. E é a territorialidade que transforma estes territórios em Céu pois ela, a territorialidade, está vinculada à forma como os daimistas, no caso aqui descrito, se organizam no espaço e à ele dão significado com base na cultura da Doutrina (Haesbart) que, como nos mostra o Padrinho Alfredo Mota, “o objetivo do daimista é uma vida unida, uma vida sem ambição e com compreensão espiritual. Atingir o Terceiro Milênio é atingir o tempo do Divino Espírito Santo. Não é só o tempo do espírito, é o tempo do divino Espírito Santo. Eu acredito numa vida muito educada, uma vida já fora de muitas ilusões. Isso porque a própria ilusão mostra que ou ela se acaba, ou cada um por si próprio se destrói.”. (Polari)

Desta forma podemos evidenciar, com o exemplo da doutrina do Santo Daime, que é a territorialidade, baseada em práticas culturais objetivas (concretas) e subjetivas (valores) que transformam o espaço e determinam os territórios da Doutrina que são como o Céu na Terra, o Paraíso.